domingo, 27 de junho de 2010

Querido Scott, Querida Zelda



Todos que já compraram um livro usado já devem, em algum momento, ter sido surpresos ao folheá-lo, curiosa ou despreocupadamente, e encontrar em seu interior algum vestígio deixado pelo seu antigo dono. Um marcador de páginas, uma lista de supermercado, uma foto, um cartão.

Como frequento sebos há muitos anos, confesso que sempre que vejo um livro interessante na prateleira, às vezes até mesmo livros que eu já tenho, eu abro e folheio. Não foram poucas as vezes que eu achei marcas dos antigos donos. Guardo comigo uma carta, bastante interessante, de uma mulher que confessava estar em crise em sua profissão e sonhava seguir uma carreira como escritora. Às vezes, tomo a carta da minha caixinha e procuro pelo seu nome na internet. Já encontrei, no interior de um livro bastante antigo, um lindo marcador de páginas, que era uma espécie de bilhete de divulgação de um circuito de passeios por uma região da França, datado do segundo semestre de 1929.

E, é claro, já perdi coisas dentro de vários livros que negociei por aí. Anotações, marcadores de página (inclusive um marcador de couro, cuja falta ainda me incomoda) e outras pequenas coisas já se foram em meio às páginas de livros que passaram pelas minhas mãos.



Pensei bastante a respeito disso depois da compra que fiz hoje à tarde de uma das expositoras do Brick da Redenção, em Porto Alegre. Um belo exemplar de “Querido Scott, Querida Zelda”, obra apresentada como a compilação de todas as cartas trocadas entre F. Scott Fitzgerald e Zelda Fitzgerald. A relação de ambos foi uma das mais marcantes e das mais intensas das primeiras décadas do século XX. Paixão e ódio, opulência e decadência, doença e loucura são ingredientes desse relacionamento entre duas personalidades trágicas e brilhantes. Suas vidas, em muito descritas nas páginas de obras de Fitzgerald como Belos e malditos, Suave é a noite e O Grande Gatsby, já alimentaram a sanha de biógrafos por conta desses e outros ingredientes.

O interessante é a maneira que o livro me foi apresentado pela vendedora. Logo ao pegá-lo do pano onde ele estava exposto, chamou-se a atenção a quantidade de rasuras que estampavam a primeira página, ao que a vendedora disparou:

Briga de casal. Primeiro trocaram dedicatórias, depois riscaram os nomes e as frases que escreveram com tanta força que chegaram a danificar algumas páginas seguintes, mas o miolo está limpinho.

O preço estava ótimo e, de fato, o livro estava perfeito, exceto pela rasura. Fiz algum esforço para ler o que estava sob os riscos, feitos com esferográfica azul e muita força. Não seria exagero dizer que com raiva. Juras de amor apagadas pelo tempo e por um dos outrora apaixonados.

Por mais que eu esteja sendo óbvio fazendo essa comparação, não deixa de ser engraçado que um livro que compila as cartas de um casal que viveu tão intensamente e que teve tantos problemas carregue as suas cicatrizes, deixadas pelos seus antigos donos, também um desventurado casal.

Um comentário:

  1. Gostei da tua reflexão "à la" Chartier, pensando o livro como um objeto manuseado por pessoas, não somente no seu conteúdo.

    Eu estou lendo a segunda edição que saiu pela Editora Globo da série "Em Busca do Tempo Perdido", do Proust. Eles são cheios de anotações (só tiveram um dono) e é engraçado ver as coisas que a pessoa prestava atenção na narrativa (coisas que me passariam em branco, como as vestimentas e a decoração dos interiores das casas da França belle époque).

    Ainda não conheci alguém que realmente goste de ler e não tenha gosto em possuir livros com sinais de uso.

    Abraço!

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