quinta-feira, 29 de julho de 2010

Prendam o piromaníaco do Maranhão!


Não gosto muito de participar de debates identificados com o "campo da história", mas a discussão proposta pela Prof. Silvia Hunold Lara transcende essas preocupações e toca em um debate sempre em aberto no Brasil: o lugar da memória histórica do "andar de baixo". Sarney, não satisfeito em nos ferrar com esse acordo lingüístico estúpido, assina a lei atroz que a professora Silvia analisa abaixo. Extraí o texto do informe da Anpuh e, obviamente, recomendo a leitura:
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NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: AVISO AOS REFORMADORES

por Silvia Hunold Lara (Depto. História - UNICAMP)

No início de junho desse ano, o Anteprojeto de Código de Processo Civil, elaborado por uma Comissão de Juristas que se reúne desde 2009, foi apresentado ao Senado. Na semana passada, uma comissão foi criada para examinar as 261 páginas do documento, com vários assuntos polêmicos. Certamente, deve haver muita discussão. Mas há algo que precisa ser esclarecido desde já: a comissão de juristas que elaborou o anteprojeto e o senador José Sarney, que o encaminhou ao Senado, cometem um duplo atentado à cidadania, ao autorizarem a destruição completa da memória do judiciário brasileiro e ignorarem demandas sociais reivindicadas há décadas.

Sim, é disso que se trata. O artigo 967 do atual anteprojeto repete as mesmas palavras do antigo artigo 1.215 do Código, promulgado em 1973, que autorizava a eliminação completa dos autos findos e arquivados há mais de cinco anos, "por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado". Em total desrespeito ao direito cidadão de preservação da história e às regras arquivísticas mais elementares, a determinação reforça a moda burocrática de limpar o passado. Certamente, os processos findos há cinqüenta, cem anos não servem mais para as partes envolvidas - mas servem, e muito, para se conhecer a história do judiciário, dos movimentos e das relações sociais no Brasil... A determinação decreta a amnésia social e espezinha o direito que todos temos à memória e à história.

A medida tem antecedentes históricos. Em 1890, Rui Barbosa mandou queimar os documentos referentes aos escravos existentes na Tesouraria da Fazenda, na tentativa de eliminar a "nódoa da escravidão" e impedir que ex-senhores insatisfeitos com a Abolição tivessem provas para abrir processos de indenização. A medida era meramente prática, mas rende muitos transtornos para quem quer conhecer os números da demografia escrava no final do século XIX. Seu ato, mesmo aparentemente justificável para um ministro da Fazenda preocupado em proteger o Tesouro nacional, rende-lhe até hoje a pecha de ter mandado queimar todos os arquivos da escravidão. Há algum tempo, os historiadores conseguiram contornar parcialmente o ato lesivo de Rui Barbosa graças ao acesso a outros documentos - em especial os guardados pelo judiciário brasileiro. Há muitos exemplos: as ações cíveis do século XIX incluíam freqüentemente entre suas provas os registros de propriedade sobre os escravos, com dados importantes como idade, condição matrimonial, ofício, etc; os litígios sobre inventários traziam documentos que permitem aos historiadores conhecer a vida cotidiana das fazendas e engenhos daquele período; diversos autos cíveis trataram de negociações sobre a alforria de cativos e libertos, revelando aspectos importantes da história da liberdade em nosso país. O uso dessa documentação, nas últimas décadas, permitiu redimensionar a história da escravidão e tem sido utilizada cada vez mais para conhecer a história dos trabalhadores livres e da vida cotidiana no Brasil dos séculos XIX e XX. Valor documental similar têm os processos criminais e os da Justiça do Trabalho - fontes preciosas que voltam a ser ameaçadas.

Sim, voltam a ser ameaçadas. Promulgado o Código de Processo Civil em 1973, a comunidade nacional e internacional de historiadores, juristas e arquivistas, depois de muita gritaria e vários artigos em jornais e revistas especializadas, conseguiu, em plena ditadura, suspender a vigência do tal artigo 1.215 (lei 6.246, de 7/10/1975). O que terá levado a Comissão de juristas a ignorar toda essa movimentação e a lei 6.246? Talvez sejam adeptos da mencionada moda de limpeza burocrática, talvez concordem com os argumentos aparentemente singelos (mas facilmente contestáveis) da necessidade de economia com a redução de custos de armazenamento de papéis velhos, ou confortem-se com cláusula que prosaicamente manda recolher aos arquivos públicos os "documentos de valor histórico" existentes nos autos a serem eliminados. Talvez ainda se sintam à vontade para tal ato de soberania, diante das dificuldades muitas vezes enfrentadas por historiadores e magistrados para suspender autorização análoga existente no âmbito da Justiça do Trabalho. Apesar das vitórias conseguidas com a criação de memoriais e centros de documentação em vários Estados e de numerosas resoluções aprovadas consensualmente em encontros nacionais sobre a preservação da memória da Justiça do Trabalho, com participação expressiva de pesquisadores, arquivistas e, principalmente, dos magistrados, milhares de autos trabalhistas findos há mais de cinco anos têm sido destruídos, sob a proteção da Lei 7.627, de novembro de 1987.

Rui Barbosa pelo menos lidava com questões mais concretas. No caso do atual projeto de lei, nada justifica tal barbaridade.

Restaurar a autorização para eliminar os processos cíveis findos, além de atentar contra o direito constitucional de acesso à informação (nele incluída a informação histórica, tenha ela 200, 100, 20 ou 10 anos), é também ignorar que o atual Código de Processo Civil foi modificado em função de reivindicações de entidades culturais e daqueles que são profissionalmente responsáveis pela preservação da memória e da história do Brasil. O Senado tem agora o dever de corrigir esse duplo atentado à cidadania - ou será cúmplice desse crime? Por que não aproveitar a ocasião para mudar, inscrevendo em lei a necessidade de proteger de fato o patrimônio público nacional, do qual fazem parte os processos judiciais (cíveis, criminais e trabalhistas)? Isso, sim, seria um bom modo de entrar para a história! Com a palavra os Senadores.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Francis Wheen


Aproveitei o recesso nas minhas atividades docentes, que chegaram logo após a correria do fechamento do semestre, para tirar uns dias para descansar um pouco e fazer outras coisas. Fiquei vários dias sem responder e-mails e sem escrever no blog. Li algumas coisas sem compromisso e assisti filmes que eu queria assistir há algum tempo.
Mesmo que não se trate de férias, um recesso no meio do ano vai bem. Um amigo me disse certa vez que os 3 melhores motivos para se tornar professor são: julho, janeiro e fevereiro. E não deixa de ter razão. O que cansa mesmo não é dar aula. Ao menos para mim, o que mata são os compromissos que estão no “pacote professor”, quais sejam: corrigir provas e trabalhos e preencher, com um mínimo de asseio, os cadernos de chamada.
Bueno, depois de justificar para a minha consciência (o mais cruel dos algozes) o silêncio com relação ao blog, volto preguiçosamente à ativa falando sobre um dos poucos assuntos que me interessam de fato: livros.
Das últimas leituras, devo registrar aqui “Como a picaretagem conquistou o mundo”, do jornalista britânico Francis Wheen. Além de colunista do The Guardian, o que já não é pouco, ele é lembrado com frequência pela biografia de Karl Marx, traduzida para o português pela mesma Record que publicou em 2007 o livro que ora comento. O mote é tentador: o mundo contemporâneo, segundo Wheen, viveria nas mais diversas áreas (religião, política, economia e humanidades) um regresso ao obscurantismo mais vil.
Ele coloca em paralelo a tomada do poder do Aiatolá Khomeini (representando o obscurantismo religioso vindo do oriente) com a chegada ao poder de Margareth Tatcher, na Inglaterra, representando um mergulho na imbecilização ao sabor ocidental. Bem, o livro é provocativo, tem diversas passagens divertidas, mas o autor é superficial em diversas passagens, faz resenhas de alguns livros no lugar de análises e cria algumas estratégias textuais pega-trouxa. Não acho que seja tempo perdido, muito antes pelo contrário, mas é muito superficial para o meu gosto.
Não vou entrar em maiores detalhes porque não estou com disposição para gastar pólvora com chimango. Como dizem os jogadores de futebol que estão há um tempo sem jogar, estou sem ritmo de jogo.

domingo, 4 de julho de 2010

H. L. Mencken contra o resto



H. L. Mencken (1880-1956) foi um dos jornalistas norte-americanos de prosa mais ágil e incisiva que já tive oportunidade de ler. Não seria nenhum exagero dizer que ele está na lista dos autores cujas ideias mais me divertiram. Gosto da prosa de Mencken em especial pela virulência com que ele ataca a estupidez em suas variadas formas de manifestação: a política norte-americana, o conservadorismo, os criacionistas e o chamado “senso comum”.

O que de melhor dispomos de Mencken em português está coletado na obra “O livro dos insultos”, organizada e traduzida por Ruy Castro, que apesar de fazer um jornalismo muito do sem-sal é apreciador da prosa viperina do “Leão de Baltimore”.



Bueno, em tempos bicudos como os que correm, é sempre bom relembrar a coragem de escritores como Mencken. O exemplo que vou apresentar trata de questões religiosas, mais especificamente, do debate entre criacionistas e evolucionistas nos EUA. Em 1925, ele se posicionou vigorosamente frente a um caso de estupidez exemplar, envolvendo uma acusação a um professor de biologia, John Scopes, processado por ensinar “evolucionismo” em uma escola de Dayton, Tennessee. O caso, que foi parar em um Juri popular, foi assim retratado por Mencken em uma crônica publicada no verão de 1925, uma semana antes do início do julgamento.

“Homo Neanderthalensis, H. L. Mencken

As razões de o homem inferior odiar o conhecimento não são difíceis de discernir. Ele o odeia porque o saber é complexo – porque impõe um fardo insuportável à sua minguada capacidade de absorver idéias. Assim, ele está sempre à procura de atalhos. Todas as superstições são atalhos dessa natureza. Sua meta é tornar simples e até óbvio o ininteligível. E isso prossegue no que parecem ser níveis mais altos. Ninguém que não tenha tido uma instrução prolongada e árdua é capaz de compreender sequer os conceitos mais elementares da patologia moderna. Mas até um lavrador no arado consegue captar em duas lições a teoria da quiroprática. Daí a vasta popularidade da quiroprática entre os desvalidos – assim como da osteopatia, da ciência cristã e de outras charlatanices similares. Elas são idiotas, mas são simples – e todo homem prefere o que pode entender áquilo que o intriga e desanima.

A popularidade do fundamentalismo nas camadas inferiores dos homens explica-se exatamente da mesma maneira. Todas as cosmogonias com que lidam os homens instruídos são exageradamente complexas. Seu mais simples esboço requer um imenso cabedal de conhecimentos e o hábito de pensar. Seria tão fútil tentar ensiná-las aos camponeses ou ao proletariado urbano quanto tentar instruí-los sobre os estreptococos. Mas a cosmogonia do Gênesis é tão simples que até um campônio é capaz de aprendê-la. É exposta num punhado de frases. Oferece ao homem ignorante a irresistível sensatez do absurdo. E assim, ele a aceita com altos cânticos de louvor e tem mais uma desculpa para odiar seus superiores.”

Descontado o elitismo, muito característico de sua pena e de sua época, trata-se de uma bela provocação a postura anti-intelectual de grande parte das crenças que nos cercam, sejam elas religiosas ou seculares.