quarta-feira, 25 de março de 2009

Ainda Glauber Rocha


Colo logo abaixo o texto em off que encerra o último filme de Glauber Rocha, Idade da Terra (1980), sem dúvida a experiência cinematográfica mais radical do século XX. Confira!
________________________________________________________________________Discurso final, em off, de A Idade da Terra.

http://www.tempoglauber.com.br/glauber/Entrevistas/grito2.htm, 17/06/2004.


No dia em que Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a vida de Cristo na mesma época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo e também em relação à classe operária européia. Foi um renascimento. A ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz, mas um Cristo que era venerado, revivido, revolucionado num êxtase da ressurreição.

Sobre o cadáver de Pasolini, eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo numa civilização muito primitiva, muito nova. (...)

São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, européia, misturada com índios e negros e são milênios além da medida dos tempos aritméticos ou da loucura matemática que não se sabe de onde veio nem mesmo a nebulosa do caos, no nada. Ou seja, Deus ou nada, quem não acredita em Deus, acredita no nada. Se nada for Deus...

Então, é muito rápida a história. É uma história de uma velocidade fantástica, é um desespero lisérgico. (...)

Aqui, por exemplo, em Brasília, neste palco fantástico no coração do planalto Brasileiro, forte irradiação, luz do Terceiro Mundo, numa metáfora que não se realiza na história, mas preenche um sentimento de grandeza, a visão do paraíso, essa pirâmide, esta pirâmide que é a geometria dramática do estado social, no vértice o poder, embaixo, as bases e depois os labirintos intrincados das mediações...

Toda essa ideologia do amor se concentraria no cristianismo, que é uma religião linda dos povos africanos, asiáticos, latino-americanos, dos povos totais, um cristianismo que não se realiza somente na Igreja Católica, mas em todas as religiões que encontram seus símbolos mais profundos, mais recônditos, mais eternos , mais subterrâneos, mais perdidos, a figura do Cristo, um Cristo que não está morto, mas está vivo espalhando amor e criatividade. A busca da eternidade e a vitória sobre a morte, porque a morte é uma estruturação determinada por um código fatalista, talvez de origens sexuais ou genéticas, quien lo sabe, pero se pode vencer a morte."

"Então, a civilização é muito pequena. Antes de Cristo e depois de Cristo. Um desenvolvimento tecnológico na Europa, econômico, o mercantilismo, capitalismo, neocapitalismo, socialismo, o transcapitalismo, o trans-socialismo, o anarco-construtivismo, todo um desespero de uma humanidade em busca de uma sociedade perfeita, as utopias, a marcha... Conflitos religiosos entre católicos e protestantes provocaram explosões, navegações, guerras, invasões mouras na Europa, invasões cristãs na África do Norte; Espanha, Portugal e Inglaterra ocupam a América no outro lado. Índios massacrados, negros importados, guerras de independência, latifúndios e indústrias, guerras de latifúndios e indústrias, guerras de indústrias e latifúndios, guerras civis, levantes, caudilhos, guerras, guerrilheiros, revoluções, golpes de estados, democracias, regressões, avanços, recuos, sacrifícios, martírios, América. América do Norte se desenvolve.

O desenvolvimento tecnológico americano leva a civilização ao mundo do século XX. A Revolução Soviética, a Revolução Soviética, a Re-volução Soviética de 1917 comandada por Lenine, Trotski e Stalin subverte completamente o discurso capitalista norte-americano. Enquanto isso, os povos subdesenvolvidos da América Latina, da África e da Ásia pagam o preço do desenvolvimento tecnológico da Europa, dos Estados Unidos, da Europa capitalista, da Europa socialista, da Europa católica, da Europa protestante, da Europa atéia, dos Estados Unidos.

Os povos subdesenvolvidos estão na base da pirâmide. Não podem fazer nada. Todos buscam a paz. Todos devem buscar a paz. Existirá uma síntese dialética entre o capitalismo e o comunismo, estou certo disso. E do Terceiro Mundo. Seria o nascimento da nova, da verdadeira democracia. A democracia não é socialista, não é comunista, não é capitalista. A democracia não tem adjetivos.

A democracia é o reinado do povo. A de-mo-cra-cia, a democracia é o desreinado do povo. Sabemos todos que morremos de fome nos terceiros mundos, sabemos todos das crianças pobres, dos velhos abandonados, dos loucos famintos, tanta miséria, tanta feiúra, tanta desgraça, sabemos todos disso.

É necessária uma revolução econômica, social, tecnológica, cultural, espiritual, sexual, a fim de que as pessoas possam realmente viver o prazer. O Brasil é um país grande, a América Latina, África, não se pode pensar num só país. Temos que multinacionalizar, internacionalizar o mundo dentro de um regime interdemocrático, com a grande contribuição do cristianismo e de outras religiões, todas as religiões. O cristianismo e todas as religiões são as mesmas religiões. Entre o entendimento dos religiosos e dos políticos convertidos ao amor... "

terça-feira, 24 de março de 2009

Sobre Inimigos da Esperança, de Lindsay Waters e outras mumunhas.


Li há algum tempo, devo dizer que com vivo interesse, um pequeno livro intitulado Inimigos da Esperança. Publicar, perecer e o eclipse da erudição, de Lindsay Waters. O autor, nada menos do que editor da prestigiosa Harvard University Press, apresenta um libelo contra a morte da erudição acadêmica, dissecando a crise enfrentada hoje pela produção universitária e pelos editores que ainda prezam por aquilo que oferecem ao público leitor.

A questão é esboçada de maneira bastante direta: ainda que nos EUA o ritmo de publicações na área de humanidades seja bastante alto, ele vem sofrendo um esfriamento perceptível mesmo nas grandes editoras, ligadas à, por exemplo, University of Califórnia, Duke e Standford, cuja causa principal é a pressão sofrida por esses setores, julgados financeiramente deficitários pelos administradores das universidades. Essa pressão tem como conseqüências a redução do número de obras publicadas e uma “seleção”, “extremamente criteriosa”, daquilo que deve ser trazido a lume. Usei aspas, ironizando o que eu mesmo afirmava, uma vez que essa seleção, via de regra, vem atendendo critérios mercadológicos e ou laços pessoais.

E por critérios mercadológicos leia-se: livros com potencial apelo comercial, o que, especialmente em termos acadêmicos, é risível, para não dizer esquizofrênico. Como, pergunto, o juízo intelectual pode se orientar por um critério que em absoluto ignora méritos próprios ao nosso labor como erudição, complexidade, linguagem apurada e os tais “termos técnicos” de que falam os pseudo-editores com os quais nos deparamos por aí?

Por paradoxal que seja, o que vemos é uma crescente onda de “profissionalização” das editoras universitárias, que acabam por tentar parecer com as comerciais. São os cisnes que procuram parecer com os patos em uma conciliação de interesses na maioria dos casos impossível. Mais do que isso, indesejável.

Em uma passagem um pouco longa, a qual menciono na íntegra, até porque esse blog não passa pelo crivo de nenhum adivinho que vai tentar imaginar o que os possíveis leitores achariam de uma passagem assaz extensa, Waters fustiga:

“Hoje em dia, os editores acadêmicos enfrentam perigos oriundos de todos os lados: do público, dos contribuintes, dos professores, dos estudantes, dos bibliotecários, de seus próprios colegas. Entre os administradores universitários e os próprios editores acadêmicos, que parecem se sentir forçados a concordar com expectativas que não são razoáveis, surgiu a idéia de que as editoras universitárias deveriam se transformar em ‘centros lucrativos’ e contribuir para o orçamento geral da universidade. De onde veio essa idéia? Ela é péssima. Desde Gutemberg, temos registros financeiros contínuos sobre as publicações no Ocidente, e está provado que os livros são um negócio ruim. As novidades mecânicas e eletrônicas foram, e sempre serão, uma aposta melhor. E a idéia de tentar extrair dinheiro das editoras universitárias – as mais pobres de todas as editoras – é o mesmo que esperar que os ratos da igreja contribuam para a conservação do local” (Waters, p. 11)

Nesse momento uma ponderação se faz necessária. Se Waters fala com esse verdadeiro pânico com relação à realidade dos editores universitários norte-americanos, imagine o que ele diria se conhecesse a fundo nossa realidade local. O que eu tenho visto, especialmente em editoras de universidades menores, é algo inexplicavelmente triste. São pessoas verdadeiramente despreparadas, assumindo funções para as quais não reúnem as condições mais elementares e são donas da caneta que assina sim ou não, após julgar trabalhos sobre as quais elas não conhecem o mínimo.

Distraído leitor, não pense que se trata de rancor. Meu primeiro livro foi publicado em 2005 e há um novo já aprovado por uma editora universitária. No entanto, nas andanças para a publicação do primeiro, vi coisas bastante engraçadas. Uma delas: uma senhora, professora guindada sabe lá porque ao cargo de editora, pegou os originais do meu primeiro livro, folheou, leu o sumário, foi ao final para ver o número de notas de rodapé e sentenciou: esse livro é muito acadêmico, né? Respondi, contendo o riso, que acreditava estar em uma editora universitária, e por isso...

Como demonstrou o autor com uma clareza meridiana, ver pessoas como essa de quem eu falava, que acreditam “conhecer o mercado editorial”, à frente de editoras acadêmicas é apenas um sintoma de um quadro maior e muito mais grave: o inchaço do corpo burocrático que toma conta das universidades e dos centros de apoio à pesquisa e ao desenvolvimento científico em uma escala até pouco tempo inimaginável.

Um dos reflexos dessa burocratização da administração acadêmica é o tipo de critérios de avaliação da produção docente. Eles são progressivamente quantitativos, o que, em grande medida, acaba por privilegiar uma recusa por parte de pesquisadores e editores de publicar livros que sejam fruto de uma longa e criteriosa pesquisa erudita que gerou um livro que se dirige a “um público muito específico”.

Hoje, os pesquisadores preferem, ao contrário, tomar uma pesquisa nas mãos e fatiá-la em uma dezena de artigos acadêmicos. Nessa aritmética fica comprovada a lógica que ensina ser a soma das partes mais do que o todo, uma vez que a pontuação de dois ou três artigos (o que significa algo entre 30 e 60 páginas), uma vez publicados em uma revista acadêmica bem colocada no ranking, significa a mesma pontuação que esse autor receberia pela publicação de um livro. Uma tese de doutorado bem trabalhada após a sua defesa, como é tão comum vermos nossos colegas fazendo, é como um porco: dela aproveita-se tudo. Pode render sossegados dez anos, sempre atendendo critérios de produção (2 a 3 artigos ao ano em revistas bem colocadas no Qualis) sem que seus autores escrevam uma nova linha sequer. No máximo, fazendo alguns ajustes e atualizando a bibliografia para dar um cheirinho de novidade ao prato requentado.

Essa nova lógica do trabalho acadêmico vem orientando inclusive a escrita de teses e dissertações. Acabou por se tornar um “estilo”. Os trabalhos são, no mais das vezes, escritos de maneira fragmentária, em seções que mantém uma certa independência com relação ao todo, permitindo facilmente ao seu autor, uma vez defendido o trabalho, recortá-lo e distribuí-lo em diversas publicações.

Nesse mesmo sentido caminham as publicações dos tais livros organizados, dos quais eu mesmo já participei e é provável que volte a participar, no entanto nunca de maneira ingênua. Eles são uma forma rápida e fácil de fazer com que autores que pesquisam temas minimamente assemelhados reúnam coisas que, não raro, são profundamente desiguais em profundidade, tipo de abordagem e mesmo proposta, enfeixem entre duas capas e mandem para as prateleiras das livrarias. Com isso, mais alguns pontinhos são somados ao currículo do autor.

Essas características da produção intelectual nos dias que vivemos, e que foram apresentadas aqui de maneira impressionista, tem pelo menos duas conseqüências muito sérias e para as quais não é possível fechar os olhos: a crise da crítica e ou do julgamento, como preferirem e o parricídio que sistematicamente vem sendo praticado nos centros de ensino e pesquisa. Ora, os dois temas são mais do que amplos, no entanto não vou furtar-me à chance de comentá-los.

Sobre a crise da crítica, lamentada pelo autor ao pensar no caso norte-americano, precisamos pensar e muito, nós os debaixo da linha do Equador. Ele menciona uma entrevista concedida por Markus Meister à Harvard University Library Notes, na qual o professor Meister lamentava profundamente o fato de que os currículos, seu e de outros professores universitários, passavam pelas mãos de comissões de avaliação que quantificavam as publicações e, além disso, identificavam os locais de publicação. O que conta é o lugar onde foi publicado e não o conteúdo dessa publicação. Segundo Waters:

“Ler os próprios artigos! Que idéia exótica! Que coisa medieval! Eu me lembro quando ouvi pela primeira vez Jochen Schulte-Sasse dizer que, na Universidade de Bochum, na Alemanha Ocidental, quando um candidato estava sendo considerado para algum cargo, o departamento inteiro lia todos os escritos dele, e então os discutia” (Waters, p. 27).

Ora, algum Cândido poderia argumentar: mas as revistas possuem avaliadores que garantem a isenção dos juízos. Assim, uma vez publicado em uma grande Revista, um autor é comprovadamente competente. É nesse ponto que Waters insiste: a avaliação entre pares é, via de regra, literalmente uma troca de gentilezas entre “pares”. Como muito do que acontece em um ambiente universitário, uma grande ação entre amigos. Onde ficaram o julgamento, a crítica e o debate? Onde estão os “moralistas” que defendem de maneira encarniçada suas posições?

Não se trata aqui de uma defesa apenas da crítica destrutiva, do crítico ranzinza, mas convenhamos que é inexplicável que, para tomar como exemplo uma publicação reconhecida por sua competência como a Revista Brasileira de História, em sua edição de número 55 vol. 28 reúna 6 resenhas e as seis apresentem verdadeiras loas aos autores dos livros resenhados. Todos os livros são leituras obrigatórias, escritas por historiadores como o primeiro a ser analisado, “de profissão historiador” mas igualmente um “encantador de palavras” (p. 267), com “o dom da escrita” e o “talento de um poeta” (p. 270). Ou como o terceiro livro comentado, o qual “é uma leitura obrigatória não só para quem pretende ampliar seus horizontes de conhecimentos sobre a modernidade brasileira e ..., mas também para quem quer observar como se pode combinar análise e síntese...” (p. 279). Ufa! Mas é claro que, last but not least, há pérolas como essa, extraída da última resenha, quando frente à grandiosidade do feito dos autores resenhados, o professor pergunta-se: “Em razão do exposto, qual engenharia escriturística montaram estes historiadores?” (p. 292). Já houve tempos em que os “nouveaux philosophes” e o estruturalismo/pós-estruturalismo foram jargão na área de humanidades, mas convenhamos que “engenharia escriturística” é uma pérola a ser guardada...

Clifford Geertz

O texto é longo, merece ser lido com calma, mas é muito interessante. Está dentro das preocupações de blogueiro ocasional.
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São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006


Um dos principais antropólogos vivos, o norte-americano Clifford Geertz defende a necessidade urgente de compreender as religiões à luz de suas visões de mundo específicas, como Weber fez com o protestantismo

O futuro das religiões
CLIFFORD GEERTZ

Enquanto se desenrola a história política explosiva do século nascente, o desdobramento mais notável -e o mais surpreendente- que as ciências sociais se vêem obrigadas a enfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes erroneamente, como "o retorno da religião".
Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu -foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos, enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que consideravam o compromisso com a religião uma força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização.
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O estudo da religião deveria ser conduzido, desde o princípio, "do ponto de vista do indígena"
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Desde a época das sociologias clássicas -Comte (1798-1857), Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936) e Max Weber (1864-1920)-, a história da sociedade, e especialmente a da sociedade ocidental considerada como seu objetivo e estágio mais avançado, foi descrita como um movimento regular, inevitável e cumulativo de um pólo cultural claramente definido a outro -da magia à ciência, da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica, da tradição à razão: o mundo desencantado, o eu liberado de seus entraves.
A desaparição progressiva das religiões hereditárias era vista, de maneira geral, como "leitmotiv" de um uma mudança cultural; a única diferença entre uma sociedade e outra, e especialmente entre o Ocidente e o resto, era a distância que cada sociedade teria percorrido no caminho que conduz a um final comum e desmistificado.
Pode-se duvidar de que essa concepção da religião como força em constante declínio tenha sido em algum momento totalmente admitida ou aceita sem questionamento.
A persistência do interesse religioso nas sociedades mais "desenvolvidas" era evidente demais para que fosse possível ignorá-la.
Mas a partir do começo dos anos 50, época que viu o início da revolução anticolonial e o surgimento vigoroso daquilo que se viria a denominar "Terceiro Mundo", a idéia de que a secularização seria sem dúvida a voga do futuro passou a ser submetida a forte pressão. As sociedades cujas tradições ancestrais foram mascaradas por fachadas ocidentais passaram a agir subitamente em nome próprio e de acordo com as próprias representações.

Objeto flutuante
Índia ou Nigéria, Indonésia ou Argélia, para citar apenas alguns dos exemplos mais significativos, não se revelaram sociedades exclusivamente laicas. Assim que eliminada a fina película das elites ocidentalizadas, o que não demorou muito a acontecer, e embora tentassem criar e preservar uma personalidade nacional, um eu coletivo, essas sociedades se tornaram presas de conflitos de conotação religiosa -partilha, guerra civil, massacres de minorias religiosas, terrorismo religioso.
A crise entre as denominações religiosas iraquianas deflagrada pela intrusão dos EUA é só o mais recente exemplo do fato de que a evolução da sociedade moderna em direção à indiferença religiosa está longe de ser uma tendência dominante.
Uma proporção significativa dos fiéis de uma ou outra das grandes religiões do mundo vive impedida de praticar plenamente a sua fé em sociedades bastante diferentes daquelas que viram nascer essas religiões.
Estas últimas perderam pouco a pouco os lugares, as pessoas, as formações sociais dos locais e civilizações no seio das quais e em razão das quais se formaram historicamente: o hinduísmo e o budismo se dissociaram das particularidades profundas do sul e leste da Ásia, o cristianismo daquelas que estão associadas aos EUA e Europa, o islamismo das que se relacionam ao Oriente Médio e à África do Norte.
Ainda que historicamente tenha sido a estrutura cultural mais enraizada no lugar de origem e a mais afetada, em sua expressão, pelas condições locais, a religião se tornou cada vez mais um objeto flutuante, desprovido de toda ancoragem social em uma tradição fecunda ou em instituições estabelecidas.
Em lugar e em vez da comunidade solidária agregada por representações coletivas (o sonho de Durkheim), surgiu uma rede à maneira de Georg Simmel (1858-1918), difusa e desprovida de centro, conectada por afiliações genéricas, multidirecional e abstrata. A religião não se enfraqueceu como força social. Pelo contrário: parece se ter reforçado no período recente. Mas mudou -e muda cada vez mais- de forma.
É essa situação -a emergência de conflitos religiosos mais a crescente migração de pessoas e famílias rumo a sociedades mais modernas, mas igualmente diversificadas, na Europa e América do Norte, nas quais ela induz tensões e conflitos- que as ciências sociais precisam, hoje, descrever e explicar, e não uma tendência pretensamente generalizada à secularização e ao declínio da fé.
Por um lado, temos o fracasso praticamente generalizado do nacionalismo em sobrepujar e conter as diferenças tradicionais nos países a caminho da eliminação de tradições, mais de 130 dos quais surgiram entre 1950 e 2000; e de outra parte, a projeção dessas diferenças além das fronteiras desses países, no cenário mundial, em forma de forças globais.
E a situação modificada exige uma nova conceituação da religião e de seu papel na sociedade como tal. Bem ou mal, é a construção de visões de mundo com base na colisão de sensibilidades (e a construção de sensibilidades a partir do choque de visões de mundo -o processo é circular) que é preciso apresentar e compreender, no momento atual.
No que concerne à religião, o que existe de moderno na modernidade é a diversidade de crença, de fé e de envolvimento, no seio da qual existe, inevitavelmente, uma diversidade cada dia maior.
No que tange às ciências sociais, esse fenômeno se traduz em uma reorientação no sentido das abordagens hermenêuticas, semióticas e fenomenológicas. Mais que indicadores e estatísticas -índice de freqüência a locais de culto, respostas a pesquisas e outros-, o que deveria nos preocupar é a qualidade do espírito: quadros de percepção, formas simbólicas, horizontes morais.
Aquilo de que precisamos é uma espécie de quadro que permita lançar luz sobre a mudança no seio de diferentes tradições progressivamente libertadas dos contextos sociais que as viram nascer e tomar forma. E isso nos leva a estudar a modernização no seio das religiões, a não mais avaliar o avanço ou recuo "da religião" em geral, mas, sim, apreender os processos de transformação e reformulação de cada religião específica no momento em que ela se vê penetrada, de bom grado ou de mau grado, pelas perplexidades e desordens da vida moderna.

Weber mal interpretado
De fato, existe no cânone clássico um exemplo dessa concepção de "modernização no seio da religião".
Trata-se da célebre tese de Weber sobre a ética protestante; mas ela foi geralmente interpretada de maneira indevida, em certo sentido por Weber mesmo, como se fosse uma tese referente a forças causais, materiais -e não uma tese interpretativa de pesquisa do sentido.
O arrazoado de Weber, pelo menos na forma pela qual o compreendo, não é que o calvinismo tenha sido uma causa material da ascensão do capitalismo, mas que na verdade lhe tenha servido de polimento -uma formulação de seu sentido no quadro, e na direção, de uma via espiritual antiga, mas combalida e em processo de mutação.
Se esse é o caso, então as múltiplas tentativas dos teóricos do desenvolvimento, incluídas algumas de minhas idéias passadas, para descobrir o "equivalente funcional" do "efeito da ética protestante" em outras sociedades parecem um tantinho (mas só um tantinho) fora de propósito.
Aquilo que procuramos -ou deveríamos procurar- identificar não é uma causa comum, mas sim uma dificuldade comum: como gerar sentido cultural em uma situação inédita, uma paisagem de relações sociais modificadas. O caso muçulmano é exemplar quanto a isso.
A busca do equivalente à Reforma protestante entre os islâmicos modernistas ocupa os intelectuais ocidentais (e intelectuais de outras regiões) desde a época de Muhammad Abdu (1849-1905), Jamal ad Din al Afghani (1838-1897) e outros representantes do "pensamento árabe na era liberal". O fracasso destes últimos em criar um islamismo reformista, enxuto e modernizado suscitou a um só tempo perplexidade e decepção entre os teóricos como também entre algumas das pessoas que buscavam emulá-los.

Desenraizamento
Esse fracasso demonstrou perfeitamente não que, como muitas vezes se afirma, o islã não seja passível de reforma, mas sim que mudou o contexto social (incluindo a degeneração colonial e a migração de número cada vez maior de muçulmanos para ambientes não-islâmicos) no qual as reformas aconteceram.
As conseqüências de nacionalismos quase sempre enganosos -ou no mínimo incompletos- que emergiram nos novos Estados, e da migração crescente de pessoas que abandonam esses Estados em troca de contextos estrangeiros, provocaram uma crise de identidade de grande monta, jamais sentida pelos protestantes de Weber, que evoluíram em seus lugares de origem, ao mesmo tempo em meio e em oposição a comunidades religiosas fixas e familiares -cantões suíços, burgos da Alemanha setentrional e colônias isoladas na América-, e não na totalidade do vasto e tumultuado mundo cristão do século 16.
Como praticamente todas as tradições religiosas contemporâneas, o islã deixou de estar estreitamente ligado a seu contexto local, mas funciona no seio deste como uma força de oposição e até mesmo de desenraizamento.
É evidente que os detalhes e as relações de poder específicas diferem, mas as tentativas dos movimentos islâmicos reformistas de se posicionarem em relação a políticas de inspiração nacionalista definidas em contexto local são um fenômeno generalizado na Ásia e África e, à medida que a migração ao Ocidente se acelera, igualmente na Europa.
Aquilo que falta, do ponto de vista das ciências humanas, no caso do islamismo -e de que dispomos, graças a Weber, no caso do protestantismo-, é uma análise cultural e fenomenológica das mudanças internas no plano da visão de mundo e do etos, do desenvolvimento de novos quadros de significação e da motivação que estimula essa transformação e fornece a ela uma orientação de longo prazo.
E não é apenas o islã que merece uma análise dessa ordem. A revitalização do hinduísmo na Índia, do budismo no Sudeste Asiático, do cristianismo evangélico e do catolicismo na América Latina bem como a preocupante emergência do protestantismo fundamentalista na vanguarda da cena política dos Estados Unidos, um país supostamente laico, precisariam ser compreendidas em termos semelhantes -como buscas por sentido em uma situação política mutável, marcada pelo discurso nacionalista e fragmentado em facções concorrentes.
O estudo da religião, em um momento em que parece se haver esvaído toda perspectiva de vê-la desaparecer da cena mundial, deveria ser conduzido, desde o princípio, "do ponto de vista do indígena", como se poderia dizer.
Aquilo que Weber fez pelos calvinistas e pelo calvinismo -substituir sua ética no contexto de seu sistema de crenças e situá-los no quadro de uma situação material cambiável, que era a um só tempo causa e conseqüência das mudanças- precisa ser feito hoje com relação a religiões diferentes e situações diferentes, se queremos ter uma chance de compreender o chamado "retorno da religião" e apreender de maneira precisa suas implicações.
A importância da religião como componente das mudanças sociais, e não mais considerada simplesmente como obstáculo a essas mudanças, nem como voz, obstinada e condenada, da tradição, faz da época atual um momento especialmente gratificante para a espécie de pesquisa que acabo de evocar.

Dentro do turbilhão
Em momento nenhum, desde a Reforma e o Iluminismo, a luta quanto ao sentido geral das coisas e das crenças que o fundamentam foi tão aberta, ampla e aguda. Vivemos uma mudança radical e não podemos perder tempo demais para compreendê-la, como viemos a compreender, retrospectivamente, o Iluminismo e a Reforma. Devemos compreendê-la agora, no momento em que se está desenrolando.
Assim como Fabrice [de "A Cartuxa de Parma", de Stendhal] em Waterloo ou Pierre [de "Guerra e Paz", de Tolstói] em Austerlitz, nos vemos projetados ao coração dos acontecimentos que buscamos observar, com toda a confusão e incerteza que isso acarreta, incluindo dúvidas quanto à realidade do que estamos presenciando.
Mas vivemos ao mesmo tempo uma ocasião formidável para nos conectar mais estreitamente à realidade social. Aplicar as ciências humanas a um fenômeno no momento em que está se desenrolando sob nossos olhos permite que escapemos aos limites da observação distanciada, em benefício do imediatismo dos acontecimentos instantâneos. Definir a maneira de proceder para chegar a esse ponto com eficácia, força e precisão deve ser a principal prioridade para as ciências humanas e as ciências sociais neste século impetuoso.
Caso o consigamos, a velha maldição chinesa "que você viva em tempos interessantes" talvez venha, ainda que ambiguamente, a se transformar em bênção.
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A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.

Esse é o meu candidato!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Março de 1939 - Março de 2009

Glauber Rocha estaria fazendo 70 anos nesse mês de março de 2009. Você já viu os filmes de Glauber? Leu seus livros? Viu a sua imagem torturada na televisão, falando no programa Abertura, há trinta anos? Ao menos sabe quem é Glauber Rocha? Não? Não há como definir a sua obra em poucas palavras, assim como não é possível falar de seu cinema em algumas mal traçadas linhas. No que toca ao universo do maior cineasta brasileiro de todos os tempos, só há uma coisa a dizer: vá à videolocadora, pegue seus filmes e assista. Mas não o assista sem ler sobre ele, sem ler os muitos textos que ele assinou, sem vasculhar o seu universo mental, que é a mais complexa fusão entre o folclore, a arte de vanguarda e o pensamento político que tivemos notícia no país. Já faz mais de 10 anos que assisto, leio e estudo a obra de Glauber. Sobre o seu pensamento, é provável que eu ainda venha a escrever algo bem mais extenso do que uma blogada. Por ora, colo abaixo o seu primeiro manifesto, chamado Estética da Fome, apresentado na Itália em 1965. Para quem quiser saber mais sobre o Glauber, visite www.tempoglauber.com.br, de onde tirei essa versão digitalizada do texto e de onde sai muito, mas muito mais! ___________________________________________________

Estética da Fome (1965)

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as reações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subsesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo, e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicinamento colonialista.

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes. O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.
Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a esterilidade e no segundo a histeria.

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e autodevastador esforço de superar a impotência: e no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de sofrimento.

A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.

De Aruanda a Vidas Secas , o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em carros de luxo: filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porta das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco vezes Favela), ao experimental (Sol Sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e de ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e transformação.

O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido, a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romântico;Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos, Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isso tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome.

O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração.

A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência.

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial. O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conseqüentes da sua existência.



quarta-feira, 18 de março de 2009

Blog que recomendo

Para quem tiver curiosidade, recomendo vivamente o blog de meu amigo e colega Gilson Lima, no endereço http://glolima.blogspot.com. Nanociências, epistemologia, complexidade e questões contemporâneas são o prato do dia. E o tempero é muito bom, diga-se.

Ainda sobre o material on-line

Dica sobre publicações que deixam todo o seu conteúdo disponível para download: Revista Novos Estudos Cebrap. A revista, uma das mais importantes na área de humanidades no país, disponibilizou todo o seu conteúdo on-line para assinantes (ou ao menos possuidores de uma senha, rsss) do Uol. O centeúdo é excelente.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Tudo on-line

Já faz um certo tempo que os grandes centros de pesquisa, com um volume considerável de produção intelectual, vem tornando os seus acervos disponíveis on-line. Fica aqui a dica de um site gratuito com um conteúdo excepcional: www.archive.org. Obras raras com primeiras edições disponíveis para download. Isso sim, aos meus olhos, parece democratização do acesso às fontes que pode revolucionar as pesquisas, em especial na área de história, filosofia e outros campos das "humanidades".

terça-feira, 3 de março de 2009

Sociologia da resenha

Há um bom tempo li um livro que acho genial (vou publicar em próximo post alguns comentários que escrevi sobre ele), de Lindsay Waters, sobre a situação das editoras acadêmicas hoje nos EUA. Se eles, que possuem uma tradição de publicações acadêmicas e de obras de referência de alto nível, estão de cabelos em pé, o que resta de nós?
Um tema que aparece nas queixas dele e que me interessa sobremaneira é a falta de crítica. E quando falo de crítica, falo0 no mais nobre dos sentidos dessa expressão, qual seja, o debate franco e necessariamente apaixonado de idéias, algo que parece, em nosso meio, impossível. Qualquer crítica é tomada como um ataque pessoal. Portanto, elas não acontecem. Nas raras vezes em que vemos um debate, ele acaba em ataques ad hominem. Nessa seara pedregosa, o que merece um olhar atento dos sociólogos da cultura é a indústria da resenha.
Sim, pois o volume de resenhas publicado a cada número de uma revista acadêmica entre nós beira o ultraje, tamanho o número de elogios e de afagos que o resenhado recebe. Isso se deve ao fato de a resenha, entre nós, haver se tornado um mercado de favores e de estratégias de aquisição de capital social.
A resenha é, em geral, escrita por doutorandos ou mestrandos que, via de regra, são efusivos em seus elogios a obra resenhada, obra escrita por algum medalhão de quem o sujeito que se inicia nas lides acadêmicas quer se aproximar.
Já no caso de resenhas assinadas por professores na ativa e com carreira bem constituída, entramos no campo das trocas de favores, de aproximações ou mesmo de uma gentileza oferecida a um colega.
Infelizmente, na média as resenhas com algum tipo de ressalva ou crítica a determinado autor e sua obra são obra de alguma vendetta. Fica a dica para algum bourdivine de plantão: a sociologia da resenha urge.

Nulle dia sine linea...

... às vezes semanas, como dizia Walter Benjamin em uma de suas treze teses sobre o crítico. Ao menos no que diz respeito ao blog, tenho dificuldade de me organizar para escrever com constância, mas o exercício e um pouco de disciplina ainda poderão ser úteis, espero. Vamos ver se, a partir de hoje, consigo postar algo todos os dias ou, ao menos, mais de uma vez na semana.