sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Hitch 22



Confesso que antes de começar a leitura de Hitch 22, livro de memórias de Christopher Hitchens, minhas expectativas não eram muito altas. Já havia lido outros livros de Hitch, “Deus não é grande”, as suas “Cartas a um jovem contestador” e “O cristianismo é bom para o mundo?”. Além disso, havia passado os olhos por alguns ensaios de “Amor, pobreza e guerra”, em especial os ensaios literários. Devo dizer que a sua introdução ao Augie March de Saul Bellow é digna de nota. Inteligente sem ser afetado, direto sem ser simplório. Não deixei de apreciar Hitchens personagem de Hitchens, uma de suas melhores facetas, que pode ser apreciado em suas inúmeras participações televisivas.

Minha desconfiança, como se pode perceber facilmente pelo que afirmei no parágrafo anterior, não vem do desconhecimento do autor, velho conhecido de quem eu gostava bastante. Nem mesmo pelo tipo de narrativa que eu poderia encontrar, uma vez que aprecio muito as narrativas em primeira pessoa e mesmo memórias, ainda que muitos autores não sejam suficientemente cruéis consigo mesmo como o foram com terceiros.

Sem grandes convicções, fui à livraria de sempre buscar um exemplar. Comecei como sempre gosto de fazer, com um teste drive no Café da Livraria Cultura. Confesso que fiquei fortemente impressionado com o texto e não consegui largá-lo antes de vencer as suas 578 páginas, lidas em duas ou três investidas.
Tenho grande apreço por esse tipo de personagem. Hitchens equilibra, em suas memórias, a experiência histórica da Inglaterra do pós-45 com as suas escolhas, vai se expondo sem demonstrar receios. É um franco atirador, direto, não se esconde atrás de eufemismos. Expõe um pouco de sua experiência familiar em dois capítulos sensíveis, o primeiro, dedicado a sua mãe e o segundo, ao seu pai. Se não chega a expor as feridas abertas, não deixa de mostrar algumas das cicatrizes. Seu irmão, Peter, não ocupa mais do que algumas páginas de sua narrativa.

Um dos pontos altos do livro é a análise que faz da experiência de classe que rondava a cabeça de famílias inglesas de classe média, dramatizada pela entrada em uma escola privada e interna e do que isso significava. Ela remete a um tema muito lembrado por escritores ingleses e mesmo os estadunidenses, os ritos de passagem e de relações de amizade e mesmo sexuais vividas então. É todo um jogo de distinção social que se descortina, com as suas disputas, hierarquias e descobertas, em grande medida decidindo a sorte dos personagens ali envolvidos. Essa vida escolar é evocada em diversos pontos e acaba servindo de material na formação do futuro escritor e do espírito contestador de Hitchens.

Se esse é o ponto alto do livro, acho que o ponto mais polêmico, que ocupa parte significativa de suas páginas, é a adesão de Hitchens ao grupo de intelectuais que apoiaram a invasão do Iraque. Há justificativas bem apresentadas, com as quais não precisamos necessariamente concordar e sobre as quais não pretendo discorrer com muito vagar: o autor procura, nesse balanço de sua vida, por constantes que dão coerência às suas escolhas, que vão desde a sua militância trotskista nos anos 1960 e 1970 até o início dos anos 2000, quando ele se torna franco defensor do ataque ao Iraque e da captura de Sadam Hussein.

Hitchens demonstra que seu conhecimento sobre a realidade iraquiana e dos países do oriente médio vinha dos seus tempos de correspondente de jornais ingleses e passava pelos anos de militância, seja no jornalismo, seja na política.

Seu desprezo por regimes ditatoriais e teocráticos, era antigo e suas raízes podem ser ligadas à solidariedade com a minoria curda, cuja realidade ele conhecia bem ou às perseguições sofridas por intelectuais secularistas como o escritor e seu amigo Salman Rushdie, na década de 1980 ou Ayaan Hirsi Ali, nos anos 2000. O seu antídoto para isso? O internacionalismo, o cosmopolitismo, a solidariedade internacional e o secularismo radical, conceitos que são usados ao longo do texto para, de algum modo, explicar como fez as suas escolhas.

Aqueles que partem para a leitura de Hitch 22 atrás de um bufão e de litros e litros de whisky, perdem a viagem. Mas ganham a leitura de um belo livro.

2 comentários:

  1. Havia passado o olho também por esse livro. Lembro de ter lido o capítulo sobre sua amizade com Edward Said. Me pareceu ótima leitura, mas já tenho um caminhão de leituras na frente...

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    1. O capítulo sobre o Said é muito bonito. Refaz o caminho da relação entre eles desde o momento em que se conhecem até o rompimento. O retrato do Said está muito engraçado, na realidade.

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