terça-feira, 24 de março de 2009

Sobre Inimigos da Esperança, de Lindsay Waters e outras mumunhas.


Li há algum tempo, devo dizer que com vivo interesse, um pequeno livro intitulado Inimigos da Esperança. Publicar, perecer e o eclipse da erudição, de Lindsay Waters. O autor, nada menos do que editor da prestigiosa Harvard University Press, apresenta um libelo contra a morte da erudição acadêmica, dissecando a crise enfrentada hoje pela produção universitária e pelos editores que ainda prezam por aquilo que oferecem ao público leitor.

A questão é esboçada de maneira bastante direta: ainda que nos EUA o ritmo de publicações na área de humanidades seja bastante alto, ele vem sofrendo um esfriamento perceptível mesmo nas grandes editoras, ligadas à, por exemplo, University of Califórnia, Duke e Standford, cuja causa principal é a pressão sofrida por esses setores, julgados financeiramente deficitários pelos administradores das universidades. Essa pressão tem como conseqüências a redução do número de obras publicadas e uma “seleção”, “extremamente criteriosa”, daquilo que deve ser trazido a lume. Usei aspas, ironizando o que eu mesmo afirmava, uma vez que essa seleção, via de regra, vem atendendo critérios mercadológicos e ou laços pessoais.

E por critérios mercadológicos leia-se: livros com potencial apelo comercial, o que, especialmente em termos acadêmicos, é risível, para não dizer esquizofrênico. Como, pergunto, o juízo intelectual pode se orientar por um critério que em absoluto ignora méritos próprios ao nosso labor como erudição, complexidade, linguagem apurada e os tais “termos técnicos” de que falam os pseudo-editores com os quais nos deparamos por aí?

Por paradoxal que seja, o que vemos é uma crescente onda de “profissionalização” das editoras universitárias, que acabam por tentar parecer com as comerciais. São os cisnes que procuram parecer com os patos em uma conciliação de interesses na maioria dos casos impossível. Mais do que isso, indesejável.

Em uma passagem um pouco longa, a qual menciono na íntegra, até porque esse blog não passa pelo crivo de nenhum adivinho que vai tentar imaginar o que os possíveis leitores achariam de uma passagem assaz extensa, Waters fustiga:

“Hoje em dia, os editores acadêmicos enfrentam perigos oriundos de todos os lados: do público, dos contribuintes, dos professores, dos estudantes, dos bibliotecários, de seus próprios colegas. Entre os administradores universitários e os próprios editores acadêmicos, que parecem se sentir forçados a concordar com expectativas que não são razoáveis, surgiu a idéia de que as editoras universitárias deveriam se transformar em ‘centros lucrativos’ e contribuir para o orçamento geral da universidade. De onde veio essa idéia? Ela é péssima. Desde Gutemberg, temos registros financeiros contínuos sobre as publicações no Ocidente, e está provado que os livros são um negócio ruim. As novidades mecânicas e eletrônicas foram, e sempre serão, uma aposta melhor. E a idéia de tentar extrair dinheiro das editoras universitárias – as mais pobres de todas as editoras – é o mesmo que esperar que os ratos da igreja contribuam para a conservação do local” (Waters, p. 11)

Nesse momento uma ponderação se faz necessária. Se Waters fala com esse verdadeiro pânico com relação à realidade dos editores universitários norte-americanos, imagine o que ele diria se conhecesse a fundo nossa realidade local. O que eu tenho visto, especialmente em editoras de universidades menores, é algo inexplicavelmente triste. São pessoas verdadeiramente despreparadas, assumindo funções para as quais não reúnem as condições mais elementares e são donas da caneta que assina sim ou não, após julgar trabalhos sobre as quais elas não conhecem o mínimo.

Distraído leitor, não pense que se trata de rancor. Meu primeiro livro foi publicado em 2005 e há um novo já aprovado por uma editora universitária. No entanto, nas andanças para a publicação do primeiro, vi coisas bastante engraçadas. Uma delas: uma senhora, professora guindada sabe lá porque ao cargo de editora, pegou os originais do meu primeiro livro, folheou, leu o sumário, foi ao final para ver o número de notas de rodapé e sentenciou: esse livro é muito acadêmico, né? Respondi, contendo o riso, que acreditava estar em uma editora universitária, e por isso...

Como demonstrou o autor com uma clareza meridiana, ver pessoas como essa de quem eu falava, que acreditam “conhecer o mercado editorial”, à frente de editoras acadêmicas é apenas um sintoma de um quadro maior e muito mais grave: o inchaço do corpo burocrático que toma conta das universidades e dos centros de apoio à pesquisa e ao desenvolvimento científico em uma escala até pouco tempo inimaginável.

Um dos reflexos dessa burocratização da administração acadêmica é o tipo de critérios de avaliação da produção docente. Eles são progressivamente quantitativos, o que, em grande medida, acaba por privilegiar uma recusa por parte de pesquisadores e editores de publicar livros que sejam fruto de uma longa e criteriosa pesquisa erudita que gerou um livro que se dirige a “um público muito específico”.

Hoje, os pesquisadores preferem, ao contrário, tomar uma pesquisa nas mãos e fatiá-la em uma dezena de artigos acadêmicos. Nessa aritmética fica comprovada a lógica que ensina ser a soma das partes mais do que o todo, uma vez que a pontuação de dois ou três artigos (o que significa algo entre 30 e 60 páginas), uma vez publicados em uma revista acadêmica bem colocada no ranking, significa a mesma pontuação que esse autor receberia pela publicação de um livro. Uma tese de doutorado bem trabalhada após a sua defesa, como é tão comum vermos nossos colegas fazendo, é como um porco: dela aproveita-se tudo. Pode render sossegados dez anos, sempre atendendo critérios de produção (2 a 3 artigos ao ano em revistas bem colocadas no Qualis) sem que seus autores escrevam uma nova linha sequer. No máximo, fazendo alguns ajustes e atualizando a bibliografia para dar um cheirinho de novidade ao prato requentado.

Essa nova lógica do trabalho acadêmico vem orientando inclusive a escrita de teses e dissertações. Acabou por se tornar um “estilo”. Os trabalhos são, no mais das vezes, escritos de maneira fragmentária, em seções que mantém uma certa independência com relação ao todo, permitindo facilmente ao seu autor, uma vez defendido o trabalho, recortá-lo e distribuí-lo em diversas publicações.

Nesse mesmo sentido caminham as publicações dos tais livros organizados, dos quais eu mesmo já participei e é provável que volte a participar, no entanto nunca de maneira ingênua. Eles são uma forma rápida e fácil de fazer com que autores que pesquisam temas minimamente assemelhados reúnam coisas que, não raro, são profundamente desiguais em profundidade, tipo de abordagem e mesmo proposta, enfeixem entre duas capas e mandem para as prateleiras das livrarias. Com isso, mais alguns pontinhos são somados ao currículo do autor.

Essas características da produção intelectual nos dias que vivemos, e que foram apresentadas aqui de maneira impressionista, tem pelo menos duas conseqüências muito sérias e para as quais não é possível fechar os olhos: a crise da crítica e ou do julgamento, como preferirem e o parricídio que sistematicamente vem sendo praticado nos centros de ensino e pesquisa. Ora, os dois temas são mais do que amplos, no entanto não vou furtar-me à chance de comentá-los.

Sobre a crise da crítica, lamentada pelo autor ao pensar no caso norte-americano, precisamos pensar e muito, nós os debaixo da linha do Equador. Ele menciona uma entrevista concedida por Markus Meister à Harvard University Library Notes, na qual o professor Meister lamentava profundamente o fato de que os currículos, seu e de outros professores universitários, passavam pelas mãos de comissões de avaliação que quantificavam as publicações e, além disso, identificavam os locais de publicação. O que conta é o lugar onde foi publicado e não o conteúdo dessa publicação. Segundo Waters:

“Ler os próprios artigos! Que idéia exótica! Que coisa medieval! Eu me lembro quando ouvi pela primeira vez Jochen Schulte-Sasse dizer que, na Universidade de Bochum, na Alemanha Ocidental, quando um candidato estava sendo considerado para algum cargo, o departamento inteiro lia todos os escritos dele, e então os discutia” (Waters, p. 27).

Ora, algum Cândido poderia argumentar: mas as revistas possuem avaliadores que garantem a isenção dos juízos. Assim, uma vez publicado em uma grande Revista, um autor é comprovadamente competente. É nesse ponto que Waters insiste: a avaliação entre pares é, via de regra, literalmente uma troca de gentilezas entre “pares”. Como muito do que acontece em um ambiente universitário, uma grande ação entre amigos. Onde ficaram o julgamento, a crítica e o debate? Onde estão os “moralistas” que defendem de maneira encarniçada suas posições?

Não se trata aqui de uma defesa apenas da crítica destrutiva, do crítico ranzinza, mas convenhamos que é inexplicável que, para tomar como exemplo uma publicação reconhecida por sua competência como a Revista Brasileira de História, em sua edição de número 55 vol. 28 reúna 6 resenhas e as seis apresentem verdadeiras loas aos autores dos livros resenhados. Todos os livros são leituras obrigatórias, escritas por historiadores como o primeiro a ser analisado, “de profissão historiador” mas igualmente um “encantador de palavras” (p. 267), com “o dom da escrita” e o “talento de um poeta” (p. 270). Ou como o terceiro livro comentado, o qual “é uma leitura obrigatória não só para quem pretende ampliar seus horizontes de conhecimentos sobre a modernidade brasileira e ..., mas também para quem quer observar como se pode combinar análise e síntese...” (p. 279). Ufa! Mas é claro que, last but not least, há pérolas como essa, extraída da última resenha, quando frente à grandiosidade do feito dos autores resenhados, o professor pergunta-se: “Em razão do exposto, qual engenharia escriturística montaram estes historiadores?” (p. 292). Já houve tempos em que os “nouveaux philosophes” e o estruturalismo/pós-estruturalismo foram jargão na área de humanidades, mas convenhamos que “engenharia escriturística” é uma pérola a ser guardada...

3 comentários:

  1. Caro Éder,

    É imensuravel o valor das tuas palavras neste post de hoje, muito embora o meu contato com as ditas publicações de carater erudito sejam ainda muito incipientes, mas não posso deixar de fazer uma reflexão sobre o mercado editorial brasileiro: Será que as obras não são também um reflexo da mediocridade do autor que idiotiza o mercado e uma grande parte dos ditos leitores brasileiros. Como bem sabes vivemos e tempos de idiotização onde um simples filosofo inventado em uma sala de aula qualquer desse Brasil ganha ares de formador do pensamento ocidental, e pasmem pelo ineditismo de sua obra. Isso é sim um reflexo da idiotização do mercado editorial, pois se tivessemos a oportunidade de ter acesso facil a livros e artigos academicos de relevancia... Não continuaremos a ser idiotas editorialmente falando. Entendo que o amigo entre outros mortais são a excessão no que se refere a qualidade editorial academica, mas e o povão universitário como fica sem os Eduardos Buenos da vida...

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  2. Caro amigo,
    sabes que as coisas são realmente complicadas. O material existe, mas não circula ou circula pouco. Via-de-regra, resultados de pesquisa são publicados em revistas acadêmicas. Essas revistas tem tiragens pequenas e distribuição precária. Já os livros, e aí tem muita coisa misturada na estante das livrarias, ganham visibilidade mas nem sempre são a melhor pedida na hora de estudar, salvo as obras clássicas, que é um outro papo. Por isso carecemos de uma sociologia da resenha, não é mesmo? Bem, como sobre filósofos de Parma não sei o que falar, calo.
    Aquele abraço!

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  3. Em livrarias pequenas (e até algumas grandes) é comum encontrarmos na sessão de História somente livros com títulos escandalosos como "A verdadeira história dos Templários","A vida de Jesus Cristo" e outras obras escatológicas. Eu até compreendo que os leitores comuns tenham interesse sobre esses temas, mas eu vejo que a falta de organização de muitas livrarias se deve muito a ignorância por parte dos funcionários do estabelecimento, ou agora Nietzsche é livro de auto-ajuda e Augusto Cury é de filosofia? (e eu já ví essa troca). Quanto as revistas acadêmicas, meu acesso a elas se dá exclusivamente via virtual, pois fisicamente é uma dificuldade achar tais trabalhos, tanto mais difícil com temas que me interessem.

    Do mundo editorial dos trabalhos acadêmicos atuais eu sei muito pouco, e nesse sentido teu posto foi esclarecedor, mas até autores que podem ser considerados como clássicos eu tenho uma certa dificuldade de achar (geralmente só sob encomenda). Como o autor do qual tu partiu teu post escreveu, o mercado editorial de livros não me parece um bom lugar para se obter "lucro", porém, a racionalização capitalista de todos os âmbitos de nossa vida geram verdadeiros abortos editoriais (vide os Top 10 de qualquer livraria), abortos estes que devem ser cada vez mais apelativos, pois competem com a televisão e a internet em um mundo extremamente ignorante aonde quem lê dois livros por ano é um super-leitor (e nem vamos discutir a qualidade dessas leituras).

    Minha opinião: o futuro é a distribuição livre do material intelectual pela internet (minha utopia cyberpunk). Inciativas como o site Domínio Público são ao meu ver a alternativa para a dificuldade que se há de alguém investir nestes trabalhos para adquirirem um formato físico de um livro. Outras inciativas, como a do Grupo Digital Source, que faz excelentes scans de variados livros, desvinculam nossa escravidão com as editoras, que sempre salgam o preço dos seus produtos e reeditam livros esgotados somente quando melhor lhe parecerem. Entramos então na discussão dos direitos autorais, pois aqueles que trabalham com o avanço do conhecimento, como tu, estão interessados em subverter uma das bases do capitalismo abrindo mão do que, em tese, lhes é de direito (ou seja, a cobrança para aqueles que desejam utilizar o conhecimento da tua autoria)?
    Abração!

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